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Silvio Meira: “Ainda somos mal informatizados na América Latina”

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Palestrante internacional de TICAL2016, o engenheiro e professor brasileiro Silvio Meira foi um dos nomes mais comentados da sexta edição da Conferência, realizada entre os dias 13 e 15 de setembro, em Buenos Aires. Sua apresentação “A hora da performance em tempos de transformação digital” foi muito elogiada pelos participantes e gerou discussões a respeito de como as instituições e redes acadêmicas devem adaptar-se às novas tecnologias. Nessa entrevista, Meira comenta o estado das TIC na região, explica o conceito de performance digital e o impacto do novo momento tecnológico sobre a educação.

O que significou para você participar de um evento como TICAL?

Não foi a primeira vez que falei em uma conferência específica para o público latino-americano, mas confesso que são poucas as vezes em que tive essa oportunidade. Para mim, participar de TICAL foi muito bom. Sinto falta disso. Nosso continente é regionalmente coeso, mas culturalmente difuso. Sabemos pouco uns dos outros. No Brasil se conhece muito mais sobre os EUA do que sobre a Colômbia, por exemplo.

A partir da sua área de atuação, como você avalia o desenvolvimento das TIC na América Latina? Quais são nossos principais desafios e oportunidades?

Para se ter uma ideia, o Brasil é cerca de 1,5% do mercado global de TIC. Isso já dá uma boa ideia de como estamos atrasados, porque somos metade da América Latina. Brasil, México e Argentina são responsáveis por quase 70% do mercado latino. Outro dado interessante é que a posição global do Brasil é muito mais alta na economia do que como participante do mercado TIC e isso denuncia nosso problema. Significa que somos mal informatizados. Temos poucas empresas latinoamericanas que são provedoras de TIC no mercado global. A brasileira Totvs (empresa de software de gestão) é um exemplo. Mercado Libre é outro, mas ainda são pouquíssimos. Temos ainda algumas empresas argentinas e chilenas na bolsa de Nova York. Mas são poucas as que tem o que chamamos de “Classe Global”. Ser global não tem a ver com ter um grande faturamento, mas de expandir seu campo de ação. O Waze, por exemplo, é feito em Israel, mas está presente em muitos outros países. Nem mesmo no mercado interno, onde supostamente deveria haver mais espaço, temos predominância de empresas locais.

E a que você atribui isso?

Nossa região é marcada por um alto grau de intervenção política na economia. Isso desestabiliza qualquer tentativa de construção de estratégia de longo prazo para participação no mercado global. Variamos entre governos populistas autoritários e libertários. E nesse swing, nessa oscilação entre os extremos, exterminamos a capacidade de construção de estratégias de médio porte e longo prazo. A Venezuela, por exemplo, tem muitos profissionais competentes na área de TIC, mas que foram destruídos pelo ultimo governo. Os casos que deram certo em nossa região são projetos de que já tem décadas de existência, como a Embraero no Brasil. A Embraero levou 30 anos pra fazer um bom avião. Atualmente, há pouquíssimos projetos em TIC na América Latina que tenham três décadas de estratégia. No Chile talvez exista algo, mas nos outros países não há.

O que tem a dizer sobre o Chile?

O Chile precisou e soube fazer algumas escolhas. É um país territorialmente longo, com pouca população, áreas inóspitas no norte e no sul e, acima de tudo, terremotos. Por isso precisou desenvolver ideias, processos de construção civil que fossem à prova de terremotos, por exemplo. Nos últimos terremotos nenhum prédio caiu e terremotos da mesma magnitude devastaram o Haiti, por exemplo. O Chile tem demonstrado o que significa fazer escolhas. É preciso estar focado. Além do mais, o país tem educação de qualidade. Minha equação é que quando se somam fundamentos, escolhas corretas e foco em longo prazo sempre se colhem bons resultados.

O Silicon Valley, por exemplo, é um spinoff do investimento americano em defesa. A própria Internet é. Mais uma vez é uma questão de identificar necessidades, o que nem sempre é fácil. Mas temos que ter em mente que nada é por acaso, inclusive na área das TIC. O Porto Digital (parque tecnológico do qual é um dos fundadores), por exemplo, está em seu 16º ano de existência, mas cremos que precisaremos de mais 20 anos para que efetivamente nos estabeleçamos como um vetor econômico, que gere desenvolvimento para o país. Estamos falando de décadas, pois nada se resolve em um mandato. O Brasil é um exemplo acabado de como não criar projetos. Cada politico quer resolver o problema da educação em quatro anos. Nada se resolve em quatro anos. Temos esses dois problemas na América Latina: a questão política e a falta de persistência.

Você falou em sua palestra que estamos chegando ao fim da era da ingenuidade digital e chegando à era da performance digital. O isso significa na prática? No que consistem essas eras?

A era da ingenuidade está marcada por serviços de baixa performance, baixa qualidade, baixa segurança e baixo número de usuários justamente por causa desses três fatores. Google, por exemplo, já possui verificação de segurança dupla, assim como Facebook e Twitter. Para o usuário comum, portanto, torna-se inaceitável perder a senha do e-mail de sua rede nacional e não poder recuperá-la. O Whatsapp é outro exemplo; se mudamos de aparelho, quando troco meu chip minhas informações estarão todas no novo aparelho, e isso é feito da forma mais inteligível possível.
Agora me diga qual serviço público em um país da América Latina tem funcionalidades como essa? Ou mesmo serviços de universidades? Em meu centro, por exemplo, mudaram a política de grupos de e-mail, que hoje contempla aproximadamente 5 mil pessoas. Tudo foi mudado e ninguém foi avisado. Como isso pode acontecer, uma vez que Facebook tem mais de um bilhão de usuários e consegue me notificar? Não é tanto que as empresas sejam ingênuas, é que o usuário já não é mais ingênuo.

A era da performance tem como características chave justamente a centralidade no usuário, além da qualidade da interface, o foco em resultados e a utilização de plataformas como bases para “ecossistemas” tecnológicos. O Uber é um bom exemplo de um aplicativo que consegue reunir essas quatro qualidades, facilitando a vida do usuário e do prestador de serviço.

Ainda em sua palestra, você disse que setores como TI e Mídia estão quase que totalmente digitalizados, mas que o setor da educação ainda não. O que falta?

É necessário “mudar de fase”. Nosso sistema educacional está programado para repetir a codificação do passado, mas precisa ser reprogramado para inventar o futuro a partir de fundamentos essenciais: Pitágoras, literatura fundamental de cada país, leitura e escrita... Se tivermos uma população iletrada, todo o resto é inútil. Temos muito analfabetos funcionais em nossos países, gente que não consegue compreender um parágrafo complexo. Precisamos ensinar fundamentos da lógica e princípios de argumentação para que as pessoas possam participar de uma mesa de discussão. Se elas não tem essa capacidade, jamais poderão gerir uma empresa por exemplo. Entre dois engenheiros competentes, vamos escolher aquele que além de fazer cálculos corretos, saiba ler, analisar, sintetizar e explicar. Digo que precisamos sair da “codificação do passado para a explicação do presente com os fundamentos do passado” para a “fundamentação do presente para a construção do futuro com métodos do futuro”. Os professores precisam aprender e se adequar, porque tem conhecimento estrutural. Os professores que conhecem suas matérias não tem medo do digital.

Seguindo essa mesma linha, falando sobre o mundo das redes, há redes ao redor do mundo que resistem em disponibilizar conteúdo de vídeo em Youtube, por exemplo, ou mesmo utilizar outros serviços de Google porque não querem ceder seu conteúdo para outros meios. Qual é sua opinião sobre isso?

Sobre não divulgar certos conteúdos, é pura e simplesmente censura. A base do regime democrático é o acesso à informação e negar isso subentende um nível de autoritarismo inaceitável num ambiente de rede. Por outro lado, desde um ponto de vista organizacional, tentar controlar o que está acontecendo é impossível.

Então, em sua opinião, as redes acadêmicas devem aderir ao uso dessas novas redes e tecnologias, disponibilizando seu conteúdo também aí?

Sem dúvidas. A Europa gastou bilhões de euros tentando criar sua própria plataforma de busca, chamada Science, e falhou. A discussão sobre quais são nossos repositórios de vídeo, provedores de e-mail e máquinas de busca já está resolvida. Tirando quatro ou cinco governos ao redor do mundo, não há nenhum governo nacional que tenha estratégias, métodos, e recursos humanos e tecnológicos para competir com Google. A tentativa de certas redes de brecar certos avanços é justamente o que chamamos de ingenuidade digital e estratégica. O usuário tem o e-mail da rede, mas prefere usar o Gmail porque o outro vive caindo. Essa ingenuidade acontece na periferia tecnológica, onde estão as pessoas que se sentem capazes de fazer certas coisas, mas que não tiveram a oportunidade de fazer. Então querem determinar por meio de políticas nacionais que as coisas serão do jeito que querem.

Por outro lado, há espaço para inovação. Quando o mercado está conceitual ou operacionalmente fragmentado podemos criar coisas novas. Na periferia não fazemos porque temos medo de dar errado. Só queremos fazer o que alguém já fez porque já deu certo. RedCLARA, por exemplo, podia unir as redes e começar um esforço open source para criar uma plataforma exaservice de aprendizado em rede. Já tenho até um nome: “PARLA”, que significa “Plataforma de Aprendizado em Rede para Latinoamérica.” (risos)

 

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